À medida que os mercados de carbono continuam se expandindo e os países se apressam em desenvolver estruturas nacionais de carbono, os direitos de Povos Indígenas e comunidades locais - especialmente com relação à posse da terra - tornaram-se fundamentais para o debate. A sexta parte da série de webinários ALIGN (Avanço da Governança de Investimentos com Base na Terra), realizada em 27 de março de 2025, reuniu palestrantes das Filipinas, Zâmbia, Brasil e da comunidade global de advocacia para explorar como esses direitos estão sendo abordados - ou deixados de lado - nas estratégias nacionais emergentes de carbono.
Moderado por Sabine Frank, Diretora Executiva da Carbon Market Watch (Observatório do Mercado de Carbono), o webinário revelou como os esquemas de crédito de carbono estão colidindo com questões de posse de terra de longa data e como os governos, a sociedade civil e as comunidades estão reagindo. Como Frank enfatizou em seu discurso de abertura, “a premissa do debate de hoje não é que fazer com que os direitos à terra sejam respeitados resolverá todos os desafios. No entanto, nosso foco hoje é o respeito aos direitos à terra nas estruturas de carbono.”
Mercados de carbono e a lacuna da posse
Rebecca Iwerks, Diretora da Iniciativa Global de Justiça Ambiental e Fundiária da Namati, abriu a discussão enquadrando uma questão central: “Os projetos de carbono baseados na natureza afetam vastas áreas de terra, geralmente em áreas rurais como florestas e manguezais. Grande parte dessas terras é administrada sob regimes de posse informais ou inseguros”. Ela apontou uma lacuna preocupante na política: enquanto os padrões globais geralmente vinculam os direitos à terra à biodiversidade ou ao gerenciamento florestal, “os padrões do mercado de carbono são menos consistentes”.
A urgência é alimentada pela implementação do Artigo 6 do Acordo de Paris, especialmente o ponto 6.2 (comércio bilateral) e 6.4 (mercado voluntário), que levou a uma onda de desenvolvimento de políticas nacionais. No entanto, como Iwerks alertou, essa pressa resultou no desenvolvimento de estruturas ao mesmo tempo em que os projetos já estavam em andamento, arriscando violações de direitos. “Mais da metade dos países ricos em florestas não têm direitos de carbono claramente definidos”, acrescentou ela, citando um estudo conjunto do RRI (Iniciativa de Direitos e Recursos) e da Universidade McGill.
Perspectivas de países: Filipinas, Zâmbia e Brasil
Nas Filipinas, Edna Maguigad, especialista em direito e políticas, descreveu uma evolução de uma década desde a preparação para o REDD+ (Redução de Emissões por Desmatamento e Degradação Florestal) até os esforços mais recentes para regulamentar os mercados voluntários de carbono. Embora o país tenha salvaguardas ambientais e de direitos indígenas, ainda existem lacunas operacionais. “As florestas remanescentes estão, em sua maioria, em terras ancestrais, onde prevalecem direitos sobrepostos e mandatos pouco claros”, observou Maguigad. O processo de CLPI (Consentimento Livre, Prévio e Informado) é uma exigência legal, mas Maguigad enfatizou que “o comércio de carbono é classificado como extrativista e deve passar por um processo completo de CLPI”. Um novo conjunto de diretrizes de CLPI introduzidas em 2025 reconhece explicitamente os direitos dos Povos Indígenas aos créditos de carbono, um marco importante na política.
Na Zâmbia, Isaac Mwaipopo, Diretor Executivo do Centro de Política Comercial e Desenvolvimento, traçou o desenvolvimento de políticas de carbono a partir da Lei de Florestas de 2015 até a mais recente Lei de Economia Verde e Mudanças Climáticas de 2024. Embora os grupos florestais comunitários tenham sido habilitados a participar dos mercados de carbono, Mwaipopo destacou as lacunas persistentes: “A maioria dos desenvolvedores de projetos de carbono é externa, e as comunidades expressam preocupação por não saberem quanta receita está sendo obtida.” Os chefes, que exercem influência significativa sobre as terras tradicionais, geralmente são os guardiões, mas “alguns abusam de sua autoridade e tomam decisões que não beneficiam as comunidades”.
No Brasil, Johny Fernandes Giffoni, Defensor Público do Pará e especialista em direito socioambiental, descreveu um cenário jurídico complexo. Embora uma lei federal de 2024 - a Lei 15.042 - exige a consulta e consentimento para os Povos da Floresta de acordo com a legislação internacional (Convenção 169 da OIT), Giffoni observou uma desconexão entre as proteções legais e a implementação na prática. “Estamos vivendo um caos fundiário na Amazônia”, disse ele, citando o professor Girolamo Treccani. Em resposta, as comunidades estão desenvolvendo “Protocolos de Consulta Autônoma” para documentar e defender seus direitos. Giffoni destacou um caso no Pará em que as comunidades declararam que “os créditos de carbono são uma ameaça silenciosa e desconhecida”.
O papel do CLPI e do compartilhamento de benefícios
Todas e todos os painelistas concordaram que os processos de CLPI são essenciais, mas pouco desenvolvidos. Maguigad enfatizou que, nas Filipinas, o CLPI é onde ocorrem as negociações de compartilhamento de benefícios. “É fundamental garantir que os projetos de carbono sejam concebidos em conjunto com as comunidades e reflitam seus contextos sociais e ecológicos.”
Mwaipopo observou que, na Zâmbia, as OSCs (Organizações da Sociedade Civil) estão cada vez mais envolvidas, mas falta uma participação significativa. “As comunidades geralmente só se envolvem no final do processo, e o compartilhamento de benefícios ainda é opaco.” No Brasil, Giffoni descreveu ações judiciais contra desenvolvedores de carbono por não realizarem consultas adequadas e usarem cláusulas contratuais abusivas. “As comunidades estão reagindo usando ferramentas legais e alianças com universidades e a sociedade civil.”
Dados sobre a terra e a biodiversidade: Os vínculos ausentes
Outro tema fundamental foi a importância dos dados sobre a terra. “Não é possível ter estruturas de carbono equitativas sem dados fundiários transparentes, acessíveis e precisos”, disse Iwerks. Os países devem ser capazes de mapear áreas com posse clara versus insegura e avaliar onde podem surgir conflitos. Maguigad e Mwaipopo confirmaram que seus países não possuem registros integrados de projetos de carbono ou dados georreferenciados de terras, o que dificulta a prestação de contas.
A conexão entre o armazenamento de carbono e a biodiversidade também atraiu atenção crítica. Embora os projetos de carbono possam, teoricamente, se alinhar às metas de biodiversidade, muitas vezes surgem conflitos. Na Zâmbia, Mwaipopo descreveu a sobreposição de licenças para carbono e mineração na mesma terra. “Precisamos de leis claras para resolver esses conflitos e proteger as áreas ricas em biodiversidade.” Giffoni acrescentou que, no Brasil, “a biodiversidade é frequentemente comprometida na pressa de estabelecer mercados de carbono”.
Conclusões e caminhos a seguir
Em todos os contextos, o mesmo alerta ressoou: as estruturas de carbono desenvolvidas sem a posse segura da terra e a participação genuína da comunidade correm o risco de aprofundar as injustiças sociais e ambientais.
As e os participantes também fizeram perguntas e apresentaram preocupações ao painel com relação aos possíveis limites das salvaguardas e do CLPI, considerando o que descreveram em termos de lacunas de implementação, que os Povos Indígenas e o direito ao CLPI nem sempre são reconhecidos e que os conflitos são abundantes, além do fato de que os projetos de carbono como solução climática foram questionados.
Como concluiu Sabine Frank, “os direitos à terra não são a solução mágica, mas são a base. Sem eles, toda a estrutura dos mercados de carbono se torna instável.”
Vários caminhos a seguir foram destacados como necessitando de atenção antes de os governos avançarem com as estruturas nacionais:
- Clareza jurídica sobre direitos de carbono e mecanismos de compartilhamento de benefícios.
- Processos de CLPI mais fortes e mais bem implementados, com atenção especial aos sistemas jurídicos indígenas.
- A necessidade de proteção - a capacidade das pessoas de se manifestarem sobre como suas terras estão sendo impactadas sem retaliação ou represálias
- Sistemas de dados sobre terras e carbono transparentes e acessíveis às comunidades.
- Desenvolvimento inclusivo de políticas com várias partes interessadas, começando - e não terminando - com as vozes locais.
À medida que os governos avançam com o desenvolvimento de estruturas de carbono e os mercados globais de carbono amadurecem, o desafio não é mais envolver as comunidades e o público em geral, mas como isso deve ser feito. “As comunidades não são apenas partes interessadas”, disse Iwerks. “Elas são detentoras de direitos. E está na hora de as políticas de carbono refletirem essa realidade.”